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Francisco Clodomir da Rocha Girão - A História de Raimundo

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Este livro é o resultado de meticuloso trabalho de pesquisa dos historiadores Eurípedes Chaves Júnior e Valdelice Carneiro Girão e certamente é mais um passo para que o legado de Raimundo Girão possa seguir contribuindo com as novas gerações de pesquisadores da nossa história.

Em julho de 1986, Eurípedes Chaves Júnior publicou "Raimundo Girão - Polígrafo e Homem Publico", que mapeava de forma cronológica e sistemática o roteiro biográfico e bibliográfico de Raimundo e a repercussão da sua obra nos meios acadêmicos. Agora, este novo trabalho de Eurípedes é enriquecido com a participação da historiadora Valdelice Carneiro Girão, destacada figura da intelectualidade cearense e membro do consagrado Instituto do Ceará. A gênese deste livro, que agora é entregue ao público como um dos marcos das comemorações do centenário de Raimundo Girão, certamente está no rico material recolhido por Eurípedes para a elaboração do seu livro de 86.

Os organizadores realizaram uma pesquisa minuciosa de todo o material que foi possível garimpar em bibliotecas, jornais da época, arquivos da família e nos depoimentos dos contemporâneos do historiador e acumularam um amplo material capaz de traçar um perfil antológico do personagem. A quantidade e qualidade deste material é tão substancial que gerou um dilema nos mesmos ao selecionar o que comporia o escopo da presente obra, uma vez não ser possível no momento a sua total utilização.

Faz-se necessário admitir que a grande maioria dos antropólogos, sociólogos e historiadores deste país vivem, pesquisam e publicam suas obras nas regiões sudeste e sul. Entretanto aqui, no lado de cima do Brasil, também afloram nomes de grande expressão. Personalidades consagradas, como Joaquim Nabuco, Capistrano de Abreu, Gilberto Freire, Luis da Câmara Cascudo, Thomas Pompeu Sobrinho, Gustavo Barroso, Leonardo Mota e muitos outros, que contribuiram significativamente para o entendimento das raizes do povo brasileiro. Mas, quem estuda a evolução da pesquisa histórica no Brasil, reconhece a essencialidade da obra do Professor Raimundo Girão para se decifrar a formação do nosso insconsciente cultural coletivo.

Existe hoje no Brasil e no mundo uma espécie de reflexão intelectual e científica para se entender melhor a evolução das sociedades. Somos instigados a refletir sobre as grandes questões que marcam a presença do homem na terra. As grandes questões sobre a evolução humana e social acompanham a todos nós.

Por que uma sociedade se desenvolve enquanto outras vivem na estagnação ou entram em declínio e desaparecem? Penso que é a velocidade na absorçãodo conhecimento (cultural) a vontade coletiva de evoluir (política) que impulsionam as sociedades para os estágios superiores. Essa evolução precisa de grandes personagens. Homens sábios e obstinados corn disposição para quebrar os paradigmas envelhecidos.

Mas afinal quais são as características mais marcantes desses grandes homens? Qual a força capaz de transformar pessoas comuns em impulsionadores sociais? É a superioridade intelectual, dirão os psicólogos sociais. É verdade, sim. Mas existe algo muito mais profundo. Algo capaz de magnetizar uma existência e a impulsionar para a fecundidade. Esse algo mais é o amor com que alguns homens se entregaram aos seus sonhos.

Em muitos recantos do Brasil alguns desses homens trabalharam obstinadamente para a elevação do nosso conhecimento. Tenho absoluta convicção de que Raimundo era um deles.

Quando nasceu, no ano de 1900, no sertão do Ceará, era apenas mais um filho de um nobre senhor da histórica elite rural brasileira do início do século. Quando morreu em 1988 nos deixaria um legado de mais de 50 obras de imensuravel repercussão no meio acadêmico e um exemplo comovente da paixão com que se dedicava ao seu trabalho, as origens do seu povo e à cultura do seu país.

Devo ao meu pai, o professor Clodomir Teófilo Girão, o privilégio de ter conhecido de perto o legendário historiador. Foram muitas as oportunidades em que conversamos sobre teses e assuntos polêmicos com que Raimundo desafiava as "verdades consagradas" estabelecidas na pouco pesquisada história do Brasil. Arrumava com maestria seus argumentos com fatos indiscutíveis e acontecimentos documentados, de modo a chegar sempre a conclusões absolutamente sensatas e praticamente inquestionáveis. Meu pai via em Raimundo um gênio obstinado reescrevendo a história da nossa terra. Essa sua inteligência o fez merecedor de uma profunda admiração dos seus conteporâneos. Intelectuais brasileiros, tais como, Josué Montello, Luiz da Câmara Cascudo, Nertan Macedo, Nelson Werneck Sodré, Otto Maria Carpeaux, Érico Veríssimo e tantos outros cantaram louvores a obra do historiador.

Raimundo era um hábil diplomata. Sua maneira atenciosa de ouvir, sua forma educada de discordar e sua brilhante estratégia de sedimentar suas idéias, seguindo sempre numa sequência de argumentos interligados pela mais pura lógica. Jamais se deixou levar por vaidades vãs. Nunca adquiriu a impaciência dos donos da verdade. Era capaz de ouvir os argumentos de um jovem com a mesma atenção com que discutia com a comunidade acadêmica. O que mudava era apenas a didática com que expunha seus pensamentos. Para ele o mais importante era a busca da verdade.

Na época em que tive as melhores conversas com o historiador, eu assimilava o marxismo como filosofia e acreditava no socialismo como modelo ideal de sociedade. Raimundo parecia saber que aquele caminho era equivocado. Havia um crescente antagonismo de idéias no Brasil. De um lado os "intelectuais avançados" que desejavam uma sociedade igualitária e do outro os "intelectuais conservadores" que desejavam uma sociedade baseada na livre iniciativa. Era um tempo onde a certeza da superioridade ideológica e a contestação ao capitalismo eram mais recomendáveis. O patrulhamento ideológico, que ainda hoje sobrevive, era ainda mais insensato e pueril. Mas essa dicotomia maluca, não impediu que me tornasse também um admirador do estilo, da competência e do ser humano generoso que era Raimundo Girão. Hoje, quando penso que alguém seria capaz de rotular Raimundo de "intelectual conservador", eu entendo a confusão que a ignorância é capaz de provocar e percebo a abrangência da célebre frase cunhada na época por Nelson Rodrigues: "Subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos".

Quando em 1961 foi publicado Matias Beck - Fundador de Fortaleza, observou-se um choque brutal. A reação foi imediata. O historiador quebrava uma "verdade" estabelecida há séculos pelo colonizador. A igreja católica não queria assimilar a idéia de transferir a honra da fundação da cidade para um protestante. Os descendentes de portugueses não aceitavam a idéia de ter sido um holandês o fundador do povoado que um dia viria a se transformar numa das maiores metrópoles do País. Mas Raimundo, apesar de trineto de portugueses e educado na fé católica, era um homem comprometido corn a pesquisa e a verdade dos fatos. Assim, seu estudo revelaria uma verdade camuflada há séculos, que remota ao ano de 1649 corn a construção do Schoonenborch pelo líder da segunda expedição flamenga Matias Beck.

O consagrado España Semanal na sua edição de 16 de dezembro de 1968, analizando "verdades históricas" que foram quebradas em função do trabalho de novos pesquisadores, assim descreve o trabalho de Raimundo: "Guirao logró, hace un gran triunfo com respecto a la fundacion de la ciudad brasileña de Fortaleza, hasta essa fecha, se habia creido que el fundador de la ciudad habia sido el portugués Martin Soares Moreno, pero Guirao probo que el verdadero fundador de Fortaleza habia sido el protestánte holandes Matias Beck, y el Consejo Municipal, obligado por los argumentos del historiador, tuvo que rebautizar los monumentos erigidos em memoria de Martin Soares Moreno".

O outro grande desafio de Raimundo foi agregar argumentos à tese do erudito Thomas Pompeu Sobrinho, demonstrando que Vicente Yañez Pinzón chegou às terras do novo mundo em 26 de janeiro de 1500, portanto, algumas semanas antes do navegador Pedro Alvares Cabral. Hoje esse fato histórico é aceito até pelos historiadores portugueses. A única dúvida que ainda é discutível refere-se ao lugar da costa brasileira onde Pinzón ancorou seu navio pela primeira vez. Os pernambucanos acham que foi em Pernambuco. Raimundo deduziu, após estudar a documentação disponível, que foi no Ceará, que o homem europeu, na pessoa de Vicente Pinzõn, "viu, pisou e sentiu a terra brasileira pela primeira vez". Eis que agora, no seu livro Brasil: Terra à Vista! o jovem e festejado historiador Eduardo Bueno, afirma: "Cabral com certeza não foi o primeiro europeu a chegar ao Brasil. A honra cabe ao espanhol Vicente Yañes Pinzon, que em 26 de janeiro de 1500, desembarcava provavelmente nos arredores do atual cidade de Fortaleza, no Ceará".

Sabemos que no século XX o Ceará legou ao país talentosos personagens com a ânsia do saber e o fascínio pela aventura do conhecimento. Raimundo era um desses heróis. Afinal, heróis são apenas pessoas comuns que em determinado momento realizam coisas extraordinárias. Nós brasileiros parecemos ainda possuirmos o velho bloqueio ancestral que nos inibe de cultuar nossos grandes personagens, como se isso pudesse revelar o nosso provincianismo ou o nosso atraso em relação às culturas dominantes.

Penso que esta obra vai nos permitir conhecer melhor aquele inesquecível historiador, que ao longo de uma vida rica em amor ao trabalho tornou-se alguém muito à frente do seu tempo.

julho de 2000

F. C. Rocha Girão. Empresário e escritor.

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