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Célvio Brasil Girão - Saudade Ainda, Meu Velho ...

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Apesar de afeito apenas à aridez da redação de relatórios, trabalhos e documentos técnicos e burocráticos, ouso escrever, nesta passagem do 1° Centenário de Nascimento de Raimundo Girão, algumas palavras sobre a pessoa de meu pai.

Somente muito de leve me reportarei ao Raimundo Girão intelectual e homem público, pois outros com certeza o fizeram e o farão muito melhor do que eu.

Direi apenas que me orgulha profundamente saber que o Meu Velho é reconhecido, eu diria, unanimemente, como um intelectual dotado de uma inteligência possante e como um historiador brilhante de cuja pena jorraram obras de fundamental valor para o conhecimento do nosso Estado e do nosso Povo. Orgulha-me também o fato de ter sido membro operoso e destacado das duas mais importantes instituições culturais da nossa terra: o Instituto do Ceará e a Academia Cearense de Letras, com rica lista de serviços prestados aos dois tradicionais Sodalícios, além de ser sócio honorário e correspondente de vinte e oito instituições culturais brasileiras.

A sua trajetória como homem público, onde o pioneirismo era a sua marca, causa-me também um profundo sentimento de admiração. Ele foi, para citar apenas os principais cargos: Prefeito de Fortaleza, Ministro do Tribunal de Contas do Ceará, Diretor da Escola de Administração, Presidente do Conselho Penitenciário do Ceará, Secretário de Urbanismo da Prefeitura de Fortaleza, Secretário de Educação e Secretário de Cultura do Estado do Ceará.

Impressiona-me o tanto que realizou como intelectual e como homem público. Impressiona-me, mais ainda, o fato do Meu Velho ter realizado estas duas tarefas gigantescas, praticamente no mesmo espaço de tempo.

Li toda a sua obra composta de mais de 50 livros. Não a li, contudo, com a atenção devida de quem teria a obrigação de fazê-lo. Sei, agora, que esta desconcentração minha foi, em parte, devido à abrangência enorme do seu conteúdo e, em maior parte, pela minha absoluta incapacidade de assimilar tantos e variados assuntos abordados pelo Meu Velho. Os temas variavam enormemente, indo desde a pura história, passando pela filologia, pela genealogia, pela psicologia, pela economia, resvalando pelos estudos biográficos e por ensaios diversos, formando, o conjunto da sua obra, um bloco multifacetado de brilho e tamanho espantosos.

Três publicações - não necessariamente as mais importantes particularmente me encantam e constituem-se, no meu entender, indispensáveis para quem quer conhecer o nosso Estado, a nossa Fortaleza e o próprio Raimundo Girão.

Refiro-me à Pequena História do Ceará, à Geografia Estética de Fortaleza e à Palestina, uma Agulha a as Saudades.

A primeira - a Pequena História - escrita, à exemplo de toda a sua obra, em estilo inteligente a surpreendentemente simples e belo a um só tempo, compõe uma síntese bem fundamentada da história cearense desde os seus primórdios. Desmorona "verdades" até então aceitas e refaz a verdade histórica, a partir de um ponto de vista lúcido e lógico, levando aos leigos o conhecimento necessário da história do nosso Estado; e aos já iniciados, as bases, trilhas a roteiros bibliográficos seguros a serem percorridos para um aprofundamento maior dos seus estudos.

A segunda - a Geografia Estética - foi escrita com o intelecto e com o coração numa mistura deliciosa de história, crônica e poesia, e constitui-se, porventura, na mais completa obra já escrita sobre Fortaleza.

Na última das três obras a que me refiro - a Palestina, uma Agulha a as Saudades - nas palavras do primo Blanchard Girão, admirável jornalista, Raimundo Girão "pretendeu, e alcançou sem dúvida, mostrar aos pósteros como se conduzir na vida sem arranhões, perdoando, aceitando, renunciando e, acima de tudo, amando muito, porque a Palestina, não há como negar, é uma bela lição de amor".

Na Palestina, o Meu Velho se mostra inteiro como pessoa. Aparece com a sua alma exposta, sem a "roupa" do intelectual ou do homem público. Na narrativa de sua trajetória pela vida - sem que seja sua intenção - tornam-se transparentes as suas qualidades humanas: a grandeza de seu espírito, a generosidade de seu coração, o afeto aos seus semelhantes, o amor à família e o desejo verdadeiro de servir. Transparecem também, na narrativa da Palestina, o homem público limpo e obstinado que foi, nas mais diversas realizações, a maioria delas, conforme já salientamos, com a marca do pioneirismo. Foram estas suas qualidades, que de perto testemunhei, entre fascinado e comovido, que me levaram a escrever estas linhas.

Guardo dele a lembrança de um homem bom e simples que dialogava com cordialidade e respeito com os mais humildes moradores do seu Passaré, ou com as pessoas mais simples da cidade e que dispensava a jovens estudantes que o procuravam, ávidos de conhecimentos, a mesma seriedade e atenção com que tratava seus colegas da comunidade intelectual.

Meu Velho adorava o convívio com a família. Formava com a Marizot, minha santa mãe, um casal perfeito. Acompanhava e sabia das alegria e das dificuldades e problemas da cada um dos dez filhos e das dezenas de netos e bisnetos, e de todas as formas procurava orientar e ajudar a todos. Na nossa casa tínhamos um ombro amigo, um bom abrigo e uma vida em paz.

Além da família, meu pai tinha outras paixões. O Passaré, que ele dizia ser o "refúgio das minhas covardias", era uma delas. O seu sítio nas cercanias da cidade era e continua sendo um lugar paradisíaco e quase que sagrado para a nossa família. De grande beleza, com sua vegetação natural exuberante e com sua lagoa onde ele costumava gozar seus banhos, e onde, nas suas palavras "as jaçanãs esvoejam brincalhonas e os aguapés soltam o perfume das suas pétalas brancas". No Passaré Brasil Girão, como eu o batizei em despretensiosa composição musical, os braços do Meu Velho modificaram parte do natural, criando pomares e bosques para o deleite do seu espírito. Lá escreveu alguns de seus livros e, com certeza, passou muitos dos melhores momentos de sua vida. Chegou a dizer: "O Passaré sou eu em grande parte, completa-me, como eu o completei".

Morada Nova era outra de suas paixões. Ali nasceu e viveu apenas até os cinco anos de idade, não deixando contudo de continuar visitando-a freqüentemente, inicialmente em companhia do Sousa, seu venerado pai, e posteriormente sem ele, por não querer perder o contato com a terra e com os parentes queridos. Quando lá morei por dez anos, desempenhando minhas funções de Engenheiro Agrônomo, o Meu Velho a visitava praticamente a cada dois meses. Ia costumeiramente com o seu mano Raul e o meu mano Celzir. Interessava-se pelo meu trabalho no Perímetro de Irrigação de Morada Nova. Indagava, sugeria, admirava os trabalhos agrícolas ali desenvolvidos, lembrando-se, quem sabe, do tempo em que foi estudante de Agronomia, não logrando a formatura por absoluta falta de tempo, não obstante seu pendor pelos labores da agricultura. Nestas vezes em que ficava em minha casa, pedia-me invariavelmente para que eu providenciasse o banho no Banabuiú, momentos em que parecia "virar menino", e o leite mungido com que se deliciava na madrugada, encostado na cerca de algum curral.

Era um homem extraordinariamente bom. Sempre afável, solidário e generoso, soube cativar o coração de todos ao seu redor. Presenciei com indizível tristeza o momento de sua morte, segurando-lhe a mão direita como a pedir que me orientasse na vida, naquele 24 de julho de 1988.

Na página introdutória da Palestina, uma Agulha a as Saudades, citando Constâncio Vigil, diz aos seus filhos e netos: " nada tenho a dizer-lhes diferente do que tenho dito aos demais homens. Só devo pedir-lhes que me superem em retidão". Será possível, Meu Velho?

A saudade, chamada pelo tio Eduardo Girão de "doce ternura da dor", eu ainda a guardo amarrada ao peito e a cultivo com carinho, pois passou a ser a única forma de trazer o Meu Velho de volta. Saudade ainda, Meu Velho...

Fortaleza, agosto de 2000.

(Publicado no livro "Raimundo Girão, o Homem (1900-2000)" , organizado por Eurípedes Chaves Júnior e Valdelice Carneiro Girão. Fortaleza, Editora Gráfica LCR, 2000. 257 p.)

Célvio Brasil Girão. Engenheiro Agrônomo, filho do Historiador Raimundo Girão e idealizador deste site.