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Francisco Alves de Andrade - O Historiador Raimundo Girão

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O Instituto do Ceará, fazendo sua uma feliz lembrança do nosso confrade Albano Amora, deliberou inserir em seu novo Estatuto, no artigo 47 das Disposições Transitórias, a outorga do Título de Presidente Honorário, ao seu querido e dedicado sócio efetivo, Raimundo Girão, o qual lhe é entregue nesta solenidade de confraternização de Natal.

Na festa da cristandade, nestes tempos íngremes, o que se faz com o pensamento e com o coração traz-nos à mente recordações suaves e perenes que se aprofundam na alma, por mais distantes que estejam os elos da vida. Uma delas, para o humilde orador, foi a generosa incumbência, que lhe atribuíram os nobres companheiros, de a 17 de dezembro de 1970, saudar o Primeiro Presidente Honorário desta Casa, que foi o senador Dr. Manuel do Nascimento Fernandes Távora, um painel de grata existência, o qual, desaparecido, figura como um dos nomes tutelares desta Casa, redivivo símbolo para o alta mente repositum da reflexão histórica.

Vem agora dobrada a missão de saudar o seu sucessor, como o Segundo Presidente Honorário, que é hoje o professor Raimundo Girão, numa homenagem singela e forte, com indizível satisfação pelo respeito e profunda admiração que o orador e todos nós sentimos ante o vulto do historiador emérito, cuja vida e atividades culturais tão vigorosamente se alteiam, quanto é sentida a bondade que exorna o seu coração.

Dizia Sócrates que a fama é o perfume das ações heróicas. Convém precisar que esta palavra mais significava virtude para o supremo filósofo de Atenas. Eis que o dialético polemista e erudito Zenão chegara a sentenciar: "Ditosa a cidade em que se admira menos a beleza dos seus edifícios que a virtude de seus habitantes!"

Em Fortaleza, o mesmo podemos dizer de Raimundo Girão. Tão grande é a afinidade com que o historiador e a cidade se harmonizam e se compreendem, que não é possível separar-lhes o corpo da alma. Seu pensamento apanha o Ceará numa síntese de sistema, que vem do campo à cidade e aqui continua nos fundamentos de suas cercanias e fortes, no avanço de suas praças, no erguimento de suas torres, nas origens não apenas de paisagem física, mas humana, com o tratamento das genealogias familiares.

Não nos é possível dar acabamento a uma síntese de suas atividades culturais em tão breves traços e quase apagadas tintas.

Sua obra constitui o mais seguro e franco embasamento histórico-geográfico do Ceará, interessando ao Nordeste a ao Brasil pelas amarras ou vinculações dentro do espaço e no tempo. É que seus estudos permitem ao pesquisador a preparação para o mergulho nas águas mais densas da historiografia regional, notadamente da economia cearense, que não pode ser continuada, em muitos ângulos, sem reler os aspectos descritivos originais de sua lavra.

Quando a Sudene lançou a sua pesquisa em convênio com a Missão Francesa, que elaborou o Estudo Geral de Base do Vale do Jaguaribe, foi ao nosso Raimundo Girão que recorreram para esboçar no projeto geral os "Aspectos Sócio-Culturais", numa visada sobre a paisagem, o autóctone, as etapas de ocupação, a origem dos ocupantes, a seqüência da expansão demográfica, o que o fez firmado em forte a sã documentação.

Os que amanham a historiografia no Instituto do Ceará levam de ofício o lábaro que Paulino Nogueira e o Barão de Studart armaram à frente de sua bandeira, luzindo esta característica permanente: Dedimuns profecto grande patientiae documentum. Realmente, o empenho de dar ou oferecer o documentário de paciência está de pé como uma tarefa hercúlea, heróica, entre os obreiros desta Instituição.

O que vai para a frente não haveria de prosseguir sem o material que se articula com o método. Esforçaram-se em reunir para depois compendiar e servir. José Honório Rodrigues abre a cortina para mostrar-nos o caminhamento de uma história narrativa, de uma história pragmática, de uma história genética ou científica, que se inicia no século XIX, motivada pelo naturalismo renascente, até à explicação causal e o positivismo lógico, até atingir uma convicção histórica. Das insuficiências de cada época, postas no caminho do historiador, refervem as derivadas das opressões "formadas pelo anelo insatisfeito do homem", desde a tese à antítese e à antítese em marcha. Daí a sua mostra numa legenda filosófica e ao mesmo tempo poética:

"Toda forma histórica é finita e universal, contém uma mistura de satisfação e necessidade, força e agonia".

O nosso Raimundo Girão, vindo das terras e águas do Banabuiú, é rigorosamente um dos tratadistas clássicos dos estudos do Nordeste, empregada a expressão para representar a experiência do humano, que resta dos problemas da terra e do homem da Região e dos seus diferentes espaços. Nascido em Morada Nova em 03 de outubro de 1900, filho de pais sertanejos, Luís Carneiro de Sousa Girão e D. Celina Cavalcânti Girão, mudou-se com a família para Maranguape ainda criança. Quando ainda cursava o velho Liceu do Ceará, vemo-lo matriculado na 1ª. Turma de alunos fundadores da Escola de Agronomia do Ceará, a 30 de março de 1918, figurando entre os entusiastas do ensino agrícola. Seu pendor para os problemas da terra fê-lo um dos nossos escritores geopônicos, preocupados com a vida rural e de tal modo, com tanto gosto a agricultar ele próprio as suas terras no Sítio Passaré. Não se graduou em Agronomia, mas passou esta vocação a um dos filhos, herdeiro do seu natural pendor.

Bacharelou-se e doutorou-se pela Faculdade de Direto do Ceará, como aluno laureado, exercendo a advocacia, da qual passou à administração pública de Fortaleza por dois anos, daí passando a Ministro do Tribunal de Contas do Ceará, de 1935 a 1956, quando se aposentou em 1956. Em 1946 já ingressava no magistério da Faculdade de Ciências Econômicas do Ceará, docente da Cadeira de "Estudo Comparado das Doutrinas Econômicas". Em 1957 é distinguido como Professor da Cadeira de História Econômica Geral a do Brasil da Escola de Administração do Ceará, tendo sido o primeiro Diretor desta Escola estadual.

Foi o primeiro Titular da Secretaria de Cultura, nomeado pelo Governador Plácido Aderaldo Castelo, tendo antes exercido o cargo de Secretário da Educação. Recebeu em 1955 do Governo francês "Medalha de Bronze", por serviços prestados à cultura francesa, além de muitas outras comendas e prêmios culturais.

Seria fastidioso alongar-nos em seu extenso e meritório curriculum de todos nós conhecido. Lembraremos que em relação a esta Casa, foi ele eleito e proclamado sócio efetivo do Instituto do Ceará, juntamente com o Engenheiro João Nogueira e os professores Dolor Barreira e Plácido Aderaldo Castelo, a 4 de junho de 1941, vencendo 38 anos de bons e belos serviços prestados a esta Instituição.

Na Academia Cearense de Letras, eleito para a Cadeira de que era Patrono Antônio Bezerra, foi Presidente desta Instituição literária entre 1957 e 1958. Sua liderança social levou-o à Presidência também de muitas outras associações: do Rotary Clube, da Associação Cultural Franco-Brasileira, do Clube Iracema, tendo presidido, durante doze anos, o Conselho Penitenciário do Estado.

Sua experiência cultural e administrativa tornaram-no um escritor que não apenas maneja letras e conhecimentos de humano-economia, mas apresenta um testemunho vigoroso da historiografia, uma viga mestra do pensamento e ação da terra cearense, vivendo a história ativa, a geografia ativa, numa filosofia de vida e de trabalho que empolga a roda do mundo em que vivemos.

Permiti que dentre aproximadamente trinta estudos de sua autoria em órbita de sua benemérita existência, centradas naquela cognição a que chamamos de humanismo telúrico do Nordeste, relembre aos estudiosos de nossas Universidades ou Escolas, aos investigadores de todos os tempos no presente a no futuro, a sua "História Econômica do Ceará" (1947), primeira tentativa de compendiar os fatos econômicos da vida cearense; sua "Pequena História do Ceará" (1962 a 1971) - preciosa síntese em que oferece fontes bibliográficas e documentos essenciais; "A Abolição no Ceará" - uma exposição sucinta do grande feito histórico (1969); "Geografia Estética de Fortaleza", alentado estudo, cuja 1a edição data de 1959, com a nova edição a ser lançada oportunamente, guarda um conteúdo original sob novas interpretações; e além do mais, a "Antologia Cearense"(1957); "História Econômica Geral a do Brasil "(1966); "História da Faculdade de Direito" (1960); "Famílias de Fortaleza" (1975); "Palestina, uma Agulha a as Saudades" (1972); "A Academia de 1894"(1975); "Vocabulário Popular Cearense" (1967); e mais os livros de expressão lítero-científica: "Ecologia de um Poema" (1966); "Botânica Cearense nas Obras de José de Alencar e Caminhos de Iracema" (1976); e "Bichos Cearenses na Obra de Alencar" .

Paremos aqui naqueles livros que consideramos os principais, pois variada e mui vasta é a biobibliografia do nosso homenageado.

Paremos, para numa viagem onírica irmos às paragens sertanejas nas plagas onde nasceu e de onde veio Raimundo Girão. Alcançaríamos o Rio Banabuiú.

Descendo e subindo a corrente nos encontraríamos em suas águas, que banham, lá em baixo, num plano aberto, largo e lento, Morada Nova, a terra de Raimundo Girão, mas subindo o rio, em planos mais estreitos e torrenciais, mais perto das nascentes do alto Banabuiú, a minha terra, os Sertões de Mombaça.

No Ceará, é no fluir das águas que os homens se encontram, considerando-se felizes. Quantas vezes, Plácido Castelo, de saudosa memória, Mestre Girão, Mozart Aderaldo e este orador, parávamos para relembrar o Banabuiú, a história daqueles nossos sertões, cujo coração, batendo nas artérias, tem ali nas águas do Rio a sua vitalização?!

Inspirava-nos a Ode que o nosso saudoso Professor de Direito Civil, mestre Eduardo Girão, tecera com ufania e beleza:

"Banabuiú, velho deus pagão, alongando entre alas sacerdotais de jaramataias a ingazeiras, de oiticicas e umarizeiras, a receber do turíbulo dos ramos o perfume das flores e o incenso das resinas;

"Banabuiú, deus magnífico, protetor das plantas e dos animais, bendito pelas estrelas, nas alturas, e a quem na importante nave da Terra os ventos entoam exaltações, vibrando festivos e farfalhantes, nos bastos carnaubais!..."

Mestre Raimundo Girão:

Esta homenagem, que o Instituto do Ceará rende a sua amabilíssima e nobre pessoa humana pelo alto padrão de cultura e ideal de vida, considerando-o Presidente Honorário desta Instituição, tem, além do mais, uma outra razão que poderia ser vertida naquelas palavras de Zenão, legenda de um dos seus livros - "Palestina, uma Agulha a as Saudades" onde se diz assim: "um amigo é um outro nós" .

Realmente, Mestre Raimundo Girão, nosso Presidente de Honra, é um de nós que se consagrou pela amizade na perene existência do Instituto do Ceará.

Permita-nos, desta tribuna, em nome de nós todos, saudar com a mais grata e efusiva emoção, sua digníssima esposa, D. Marizot e nobre família, que bem compõe na intimidade o seu painel de existência.

Imaginemos agora estar à margem do Banabuiú, o rio da nossa saudade, "torrente das linfas do céu, em propício e dadivoso inverno".

Estenderíamos as mãos com nossas esposas e famílias, como se um ser só integralmente fôssemos, e diríamos aquelas mesmas palavras, pelo amigo citadas, de Constâncio Vigil:

"Juntos subimos a encosta da vida. Juntos, estivemos sempre na dor e na alegria. De mãos unidas, passeamos pelos jardins floridos da Primavera. Unidos, dormimos juntos ao fogo nas noites de invernia. Unidos iremos até o invisível".

(Discurso proferido no Instituto do Ceará, em 20. 12.1979)

Francisco Alves de Andrade. Professor, escritor, membro do Instituto do Ceará e da Academia Cearense de Letras.

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