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Eurípedes Chaves Júnior - O Meu Avô Raimundo Girão

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"Para dizer se de um homem é preciso conhecê lo bem. De perto, porque a distância é uma fantasia. Os montes azulados ao longe, próximos de nós são às vezes uns pedroiços. Só os contatos mais íntimos, certa convivência, podem trazer para a lente do nosso exame o caráter e temperamento dos outros. Julgar alguém por mera dedução será, porventura, escorregar para o erro de uma interpretação falaz". Estas palavras, transcritas de um prefácio inédito de Raimundo Girão, traduzem, qual luminosa e exata epígrafe, a responsabilidade e a legitimidade com as quais me invisto para traçar as relembranças que se seguem, em forma de depoimento.

Evitei o discurso meramente laudatório e louvaminheiro, procurando dizer um pouco do homem Raimundo Girão, na sua personalíssima complexidade.

A CONVIVÊNCIA E O AUXÍLIO

As mais antigas lembranças que me visitam de meu avô Raimundo Girão são as de um homem afável, carinhoso, voz branda, mas um tanto inacessível. Vejo o a escrever ou a ler, demoradamente, no gabinete biblioteca dormitório de sua residência, na rua João Lopes, n.° 14, ou na longa mesa do terraço lateral da Celínia, denominação   uma homenagem maternal   da acolhedora casa do Sítio Passaré. Recordo os rápidos banhos que ele tomava no pequeno lago cercado de aguapés. Passaré, toponímia imemorial, quer dizer "lagoa do atalho", em tupi. Posteriormente, com o loteamento de grande parte de suas terras, passou a denominar um dos bairros de Fortaleza. Com a sua casa alpendrada, a lagoa e o bacurizal, tornou se o Passaré uma das paixões telúricas do Historiador, o "refúgio das minhas covardias", como ele costumava chamar.

Dos dez aos quatorze anos passei a residir com ele, minha querida avó e os tios solteiros. Em verdade, fui ficando, usando como justificativa a proximidade do colégio em que eu então estudava. Ainda no 1° Ginasial deu me a ler O Amigo de Infância, delicioso livro de contos de Fran Martins e, de lá para cá, este hábito solitário e insubstituível não mais me abandonaria.

Acompanhei, neste período, fins da década de 60 a início dos anos 70, o seu dinamismo, operosidade a entusiasmo à frente da pioneira Secretaria de Cultura do Estado, criada por sugestão sua, e implantada pelo Governador Plácido Aderaldo Castelo com o decisivo apoio do Prof. Mozart Soriano Aderaldo, à época, Secretário de Administração; ambos, velhos e diletos amigos de meu Avô, foram, igualmente, seus companheiros em muitos misteres em prol do nosso desenvolvimento educacional e cultural. Não ignorava, decerto, outras funções de relevância por ele exercidas ao longo do tempo, com probidade e competência: as de Advogado; as de Prefeito Municipal de Fortaleza (1933 1934); as de Secretário Municipal de Urbanismo (1960) as de Professor da Faculdade de Ciências Econômicas do Ceará e posteriormente as de Catedrático e primeiro Diretor da Escola de Administração do Ceará; as de Secretário Estadual de Educação (1966); as de Presidente do Conselho Penitenciário do Ceará, por doze anos; as de Presidente da Associação Cultural Franco-Brasileira, no biênio 1952 53; as de Ministro do Tribunal de Contas do Ceará, no período de 1935 a 1956; dentre inúmeras outras. Nem desconhecia, igualmente, a sua projeção como homem de letras, autor de obra respeitada a aplaudida.

De 1976 até a sua viagem sem retorno, em 24 de julho de 1988, a nossa convivência se estreitou pelas visitas diárias que lhe fazia, facilitadas pelas poucas quadras que separavam as nossas moradias.

Conversávamos horas seguidas, trocávamos idéias. Eu, neófito sequioso, absorvendo prazerosamente os ensinamentos advindos da sua erudição e sapiência, não apenas no campo da História, como também na seara da Antropologia, da Sociologia, da Filologia, da Literatura a do Direito. Igualmente valiosas eram as suas lições de vida, oriundas do "saber só de experiências feito", como escreveu o vate lusitano.

Edificamos uma sólida a inabalável amizade. Tornamo nos confidentes e fui lhe, na medida das minhas possibilidades, companhia prestimosa e assídua. Fiz me espontaneamente, não sem zelo e sentimento de responsabilidade, seu secretário para as lides literárias, lato sensu. Dediquei lhe as horas em que não estava mergulhado nos compêndios de Medicina. Auxiliei o, de modo direto, na elaboração de suas últimas produções intelectuais através de pesquisas em sua preciosa biblioteca particular, em bibliotecas outras, em seu próprio arquivo de antigos documentos e anotações, além de curtas viagens que realizamos ao interior do Estado. Cuidávamos juntos das revisões tipográficas de suas publicações e púnhamos em dia a correspondência. Chamou me, em entrevista gravada no ano de 1986, de "o meu braço direito e o esquerdo." Tal afirmativa representa para mim honraria de inexcedível valor. Tratava me, desde a minha mais tenra idade, por Pide Velho   afetuosa expressão hipocorística.

Concomitantemente a estas atividades, publiquei, em 1986, após afanosa e minundente garimpagem, o volume Raimundo Girão   Polígrafo e Homem Público (roteiro biobibliográfico), que refuto, sem medo de incorrer em modéstia, o mais completo, não direi o melhor, levantamento da vida exemplar e da obra ciclópica de meu Avô. Penso ter facilitado aos pósteros, uma visão panorâmica e ao mesmo tempo pontual deste cidadão invulgar, sob todos os pontos de vista.

No que concerne à personalidade e ao caráter do autor de Evolução Histórica Cearense, o vovô Girão, apraz me transcrever parte da introdução que elaborei para aquele estudo: "(...) Somos testemunha da sua polimorfa e embasada cultura e da sua prodigiosa memória. A história do Ceará não lhe guarda segredos. Discorre sobre os nossos fatos históricos sem esforço, citando com precisão nomes, datas, acontecimentos... Jamais negou o estímulo de um prefácio a quem o procurou, fosse um plumitivo ou um veterano no ofício de escrever. Possui uma 'estupenda facilidade de redigir', como bem observou o crítico literário a ficcionista Braga Montenegro. Os seus escritos, mesmo os mais despretensiosos, invalidam a assertiva de Samuel Johnson segundo a qual: 'O que é escrito sem esforço é geralmente lido sem prazer.' Tem um estilo que desfaz a aspereza de quaisquer assuntos, mesmo os de cunho mais especializado. É homem sem vaidades, simples, afável, embora consciente daquilo que a sua obra representa para a cultura cearense e, acrescentaríamos nós, para a cultura nordestina. Respeita as opiniões alheias e está sintonizado com o evoluir do planeta. 'No meu tempo' não é expressão sua. Interessa se por tudo e não pára de produzir intelectualmente, o que talvez justifique a sua vitalidade às vésperas dos 86 anos de vida. Diz se um 'aposentado muito ocupado' e não dispensa o lazer em sua casa de praia na Caponga, ou no Sítio Passaré, o seu 'paraíso pessoalmente', para usar uma expressão do eminente ensaísta português Adolfo Casais Monteiro, quando de uma sua visita àquele domínio, para um almoço informal. Sua conversação é serena e cativante.

"Raimundo Girão é grande, fora e na intimidade. É símbolo, espelho e ponto de referência de numerosa família. Amigo leal e prestimoso de muitos, não fez inimigos. Envelhece cercado do carinho a admiração de todos".

O ESCRITOR INCANSÁVEL

O Polígrafo Moradanovense legou nos 53 títulos, entre livros e opúsculos, além de ter organizado 12 volumes, de variados assuntos. Contabiliza 21 prefácios a livros de terceiros, sendo que três deles não vieram à luz da publicidade. Sua colaboração em periódicos   jornais e revistas   alcançou a quase cinco centenas, entre artigos, crônicas e entrevistas.

Escrevia à mão, era destro, com uma caligrafia miúda e legível, quase não borrando os originais, em qualquer tipo de papel. Não tinha horário preferencial para fazê lo. O material manuscrito era entregue à sua filha Celda, exímia datilógrafa, para ser passado à máquina.Não obstante as destacadas e sucessivas atividades e funções públicas que exerceu ao longo da vida, sempre encontrava tempo para dedicar se ao seu labor intelectivo. Desdobrava se. Lia tudo e lia muito, dando preferência, todavia, aos assuntos de ordem histórico ântropo sociológicos. Definia se, na sua proverbial simplicidade, um "aprendiz de historiador".

Adentrou cedo no território das letras. Aos 18 anos, secundarista, estampou sua primeira página literária, a croniqueta O Condor, na Revista 19 de Outubro, órgão oficial do Grêmio Farias Brito do vetusto Liceu do Ceará. Daquela época até 4 de junho de 1988, quando publicou, em Tribuna do Ceará, seu derradeiro artigo, intitulado Dois Livros Gostosos, comentando volumes de Ivan de Castro Alves e Marciano Lopes, sua produção intelectual não sofreu interrupções significativas. O Fenômeno Freudiano e a Criminologia, de 1937, tese de doutorado em Direito e Pequena Galeria Moradanovense (biografias), de 1988, balizam no tempo a sua obra de mais de cinco dezenas de títulos.

Epistológrafo atencioso, porém não compulsivo, o tratadista de A Abolição no Ceará guardou toda a sua correspondência passiva em doze alentados colecionadores. A título ilustrativo, assinalemos as personalidades que mais assiduamente o distinguiram com mensagens escritas: Mons. Azarias Sobreira, educador, cronista e biógrafo; Pe. Antônio Gomes de Araújo, destacado historiador caririense, tratavam se, mútua a carinhosamente, por "meu irmão de 1900", em alusão à contemporaneidade do nascimento de ambos; Matos Peixoto, jurista e político cearense de projeção nacional, residente no Rio de Janeiro; Cândido Castelo Branco, o Candinho, aposentado do Banco do Brasil e irmão do ex Presidente da República Humberto de Alencar Castelo Branco, ambos amigos de Girão; Luís da Câmara Cascudo, o imenso Luís Natal, uma das incondicionais benquerenças e admirações do autor do Vocabulário Popular Cearense; Hélio Vianna, historiador e eminente professor mineiro radicado na Cidade Maravilhosa; Sílvio Júlio, pernambucano, douto estudioso dos temas hispano americanos, que residiu nesta Capital na década de 20 e tributou aos cearenses o seu Terra e Povo do Ceará, equiparado por muitos   Raimundo Girão, inclusive   ao Terra de Sol, de Gustavo Barroso, pelo valor documental e o tom apologético; e Luiz Viana Filho, baiano de grande expressão intelectual a política, membro da Academia Brasileira de Letras. Este último, ao escrever a sua festejada biografia de José de Alencar, contou com a valiosa colaboração do colega cabeça chata.

O PIONEIRISMO DE GIRÃO

Ao analisarmos mais detidamente a trajetória quase nonagenária do memorialista de Palestina, uma Agulha a as Saudades, constataremos a sua inclinação, ainda que inconscientemente, para os empreendimentos que trazem a marca do pioneirismo; se não vejamos: fundou o primeiro clube rotário do Ceará, em 1934; ajudou a implantar o núcleo cearense da Legião Brasileira de Assistência, no ano de 1942; organizou com outros intelectuais e dirigiu, pela vez primeira, a Fundação José de Alencar, em 1957; colaborou na fundação e integrou a diretoria inicial da Escola de Administração do Ceará, a segunda implantada no Brasil, também em 1957; esteve à frente da Secretaria Municipal de Urbanismo, pasta criada por sugestão sua, em 1960; tornou  se o primeiro Secretário Estadual de Cultura do País, comandando a pioneira Secretaria de Cultura do Ceará, de 1966 a 1971, secretaria esta igualmente criada sob os influxos de antiga idéia sua.

Ressaltemos a permanência viva e atuante, até os dias presentes, da quase totalidade destas instituições ou órgãos públicos.

HOMO FRATERNUS

Como legítimo e completo representante da espécie "Homo fraternus", Raimundo Girão formou, na sua longa caminhada de muitos outubros, uma legião de dedicados e fiéis amigos, assim como de confessos admiradores. Desconheço tenha feito um só desafeto. "Um amigo é um outro nós"   costumava repetir com Zenon. A prudência não nos permite arrolar nomes. Resvalaríamos, fatalmente, para o campo movediço das imperdoáveis omissões, ainda que involuntárias.

Cordial, simpático e lhano por temperamento, conquistava a todos pela simplicidade e fluência da conversação, numa voz pausada e de timbre agradável, sublinhada, em alguns momentos, com uma gesticulação serena e um tanto professoral. Discorria sobre todos os assuntos, por ser homem sempre bem informado. Mantinha-se atualizado dos fatos do dia a dia através dos noticiários de rádio e televisão, como também da leitura de periódicos. Possuía privilegia memória. É de registrar se a boa vontade com que recebia, em sua residência, a visita de jornalistas, pesquisadores e estudantes dos diversos graus, que o procuravam para entrevistas ou a elucidação de dúvidas atinentes às matérias de sua predileção. Não era muito afeito a telefonemas, em virtude da progressiva e insidiosa surdez que o acometeu, ao longo de muitos anos.

Da família, então, era quase objeto de veneração, pela figura paradigmática que representou para todos nós. "O Sumo Pontífice dos Girões"   o definiu com justeza o seu primo a dileto amigo Prof. Clodomir Teófilo Girão.

Para o genealogista de Montes, Machados, Girões, três individualidades, integrantes, todas elas, do c1ã fundado em terras alencarinas por Antônio José Girão, no início do século XIX, mereceram, de maneira especial, não apenas a sua amizade irrestrita, mas a sua gratidão e os seus louvores.

A primeira delas foi o Sousa, o escrivão Luís Carneiro de Sousa Girão (1877   1945), seu genitor e "melhor amigo"   como textualmente asseverou. Em sua homenagem compôs a antológica página Os Braços de Meu Pai.

Manuel Tibúrcio Cavalcânti (1888 1939), militar de carreira sem máculas, ex Prefeito de Fortaleza, ex Secretário Estadual da Fazenda, foi outro a quem dedicava grande afeição, publicando lhe, diga se a propósito, dois completos levantamentos biográficos. O Cel. Tibúrcio Cavalcânti foi quem o introduziu na vida pública, arrimado na estreita amizade que mantinha com o colega de arma, o então Interventor do Ceará Coronel Roberto Carneiro de Mendonça. Mais que um tio materno pela consangüinidade, foi lhe um "irmão mais relho".

O terceiro nome a destacarmos, por inteira justiça, é o do advogado, civilista respeitado, professor emérito, político e filósofo Dr. Eduardo Henrique Girão (1882   1961). Exerceu no sobrinho neto Raimundo, a mais longa e indelével das influências. Tinham se como pai e filho espirituais. Inúmeras foram as homenagens que prestou o autor de História da Faculdade de Direito do Ceará ao ilustre e querido parente, através de matéria impressa e de emocionadas manifestações orais.

AS HONRARIAS

Recebeu Raimundo Girão em vida, e mesmo in memoriam, um grande número de honrarias, em reconhecimento à importância de sua obra e pelas elevadas funções públicas que exerceu, com probidade e competência. Não caberia nos limites destas páginas a extensa relação de medalhas, troféus, títulos honoríficos e placas de prata com que foi distinguido, ao longo do tempo.

Pertenceu, em categorias variadas, a vinte a oito associações culturais, no Ceará e em outros estados da Federação.

Envaidecia se, sobre maneira, em integrar os quadros do Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico, Antropológico), na qualidade de sócio efetivo, desde 1941, tendo ali adentrado ladeado pelos escritores João Nogueira, Dolor Uchôa Barreira e Plácido Aderaldo Castelo. Participava assiduamente das reuniões bimensais e muito colaborou na prestigiosa Revista daquele Sodalício. Ocupou vários cargos de diretoria e, em 1975, foi eleito presidente de honra, em caráter vitalício, daquele egrégio templo da memória cearense. Para usarmos uma expressão cediça, Raimundo Girão fez da Casa do Barão de Studart o seu segundo lar. O título de Sócio Benemérito, recebeu o post mortem.

Integrou, a partir de 1951, igualmente como sócio efetivo e não menor satisfação, a veneranda e pioneira Academia Cearense de Letras, ocupando inicialmente a Cadeira de n° 4, cujo patrono é Antônio Bezerra, transferindo se, posteriormente, para a de n° 21, que tem o patronato de José de Alencar. Presidiu lhe os destinos no biênio 1957   1958 e, sobre e para ela, publicou: Antologia Cearense (1957), A Academia de 1894 (1975), Falas Acadêmicas (1976) e Alencar 100 Anos Depois (1976). Girão transpôs pela primeira vez os umbrais da Casa de Tomás Pompeu, em 15 de agosto daquele ano, ao lado de seleto grupo de neo consórcios formado pelos intelectuais Antônio Martins Filho, Carlyle Martins, Joaquim Alves, Fran Martins, Joaquim Braga Montenegro, Abelardo Fernando Montenegro e Antônio Filgueiras Lima. Ao inspirado poeta de Ritmo Essencial, coube agradecer em nome dos recipiendários, após o discurso de boas vindas proferido pelo acadêmico Prof. Antônio de Andrade Furtado.

Do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sediado no Rio de Janeiro, e respeitável sob todos os aspectos, recebeu Girão o diploma de Sócio Correspondente. Tal titulação, feliz proposição do historiador pernambucano José Antônio Gonsalves de Mello, que tem o valor de uma homenagem e de um reconhecimento, chegou-lhe, fato lamentável, algo tardiamente. Faleceu o tratadista de História Econômica do Ceará, dois meses após a sua concessão.

GIRÃO E AS SUAS ADMIRAÇÕES

Admiração e amizade são sentimentos que se assemelham, por serem, ambos, "afinidades eletivas". Conhecer as admirações e as amizades de alguém será caminho seguro para melhor compreendê-lo. Parafraseando o velho provérbio popular. "Dize me a quem admiras, e dir te ei quem és".

Em 1987, Raimundo Girão foi eleito, em ampla pesquisa realizada com os mais representativos elementos da intelectualidade cearense, um dos Vinte Maiores Cearenses de Todos os Tempos. Tal escolha foi uma promoção do jornalista Armando Vasconcelos em seu programa televisivo dominical, na TV Cidade, de Fortaleza.

Naquela ocasião, instado a fazê lo, Girão igualmente declarou a sua vintena. A transcrição desta relação é por demais pertinente e reveladora: José de Alencar, Capistrano de Abreu, Farias Brito, Clóvis Beviláqua, Tomás Pompeu de Sousa Brasil, Rodolfo Teófilo, Barão de Studart, José Albano, Gustavo Barroso, Pe. Senador Alencar, Castelo Branco, Pompeu Sobrinho, Delmiro Gouveia, Matos Peixoto, Djacir Menezes, Rachel de Queiroz, D. Hélder Câmara, Antônio Martins Filho e Eduardo Campos.

O autor de Iracema foi, indiscutivelmente, dentre vivos e mortos, cearenses ou brasileiros de outras plagas, a sua maior admiração. Dedicou lhe três de seus ensaios: Ecologia de um Poema (1965), Botânica Cearense na Obra de Alencar e Caminhos de Iracema (1976) e Bichos Cearenses na Obra de Alencar (1977). Organizou ainda a preciosa miscelânea Alencar 100 Anos Depois (1977), com a participação de vários exegetas da vida e da obra do Pai do Romance Brasileiro.

Gustavo Barroso e Pompeu Sobrinho, pesquisadores de grande erudição, tinham, contudo, maneiras distintas de trabalhar a matéria prima da historiografia. Formaram, seguramente, a dupla de estudiosos que mais influência exerceu sobre Raimundo Girão o qual, sob esta, por assim dizer, antagônica orientação, construiu a sua obra de historiador com um olho na literariedade e fluidez do texto, e o outro na imparcialidade e frieza do documento. Foi amigo fraterno de ambos. De Pompeu abraçou a tese do descobrimento do Brasil pelo espanhol Vicente Yañez Pinzón, nas areias da Ponta Grossa.

Com o ex Presidente da República Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco manteve sempre calorosa e mútua cordialidade, remontando o conhecimento de ambos ao tempo em que o então General exercia o comando da 10ª Região Militar de Fortaleza, lá pelos idos de 1953 1954.De Delmiro Gouveia foi sempre grande entusiasta. Louvava-lhe o espírito pioneiro e visionário. Em palestra proferida no Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, do Recife, a convite de Mauro Motta, no ano de 1963, chamou, com muita propriedade, o arrojado ipuense de "o Mauá do Nordeste".

Aconteceram na segunda metade da década de 30 os primeiros contatos do co autor do Dicionário da Literatura Cearense com o Prof. Antônio Martins Filho, o Semeador de Universidades. Desta época até o falecimento do primeiro, edificaram uma longa, sólida e operosa amizade, chancelada por duplo compadrio. Escreveram juntos o festejado O Ceará (edições de 1939, 1945 e 1966); dirigiram, por certo período, o anuário Almanaque do Ceará e mantiveram se sempre solidários e próximos nos percalços e vitórias de suas trajetórias.

Manuel Eduardo Pinheiro Campos, o Manelito Eduardo, como ele afetuosamente o tratava. Talentoso ficcionista, teatrólogo e cuidadoso historiador. Pelo seu dinamismo intelectual, arraigado cearensismo e caráter irrepreensível, mereceu sempre os melhores e manifestos elogios do ensaísta de Três Gerações.

Se não adstrito ao reduzido número de vinte personalidades, bem mais ampla seria a lista a quem Girão proclamaria os seus encômios. Constariam, decerto, para não transpormos a ferradura geográfica do território cearense, os nomes de Soares Bulcão, Tomás Pompeu de Sousa Brasil   o Senador Pompeu, Leonardo Mota, Antônio Bezerra, Raimundo Cela, Jáder de Carvalho e José Aurélio Saraiva Câmara   dentre tantos outros.

A Bulcão, poeta de rara sensibilidade, historiador e "o maior genealogista do Ceará", atribuía o autor de Famílias de Fortaleza o despertar de seu interesse para os assuntos atinentes às nossas origens, em finais dos anos 30. Até então, os seus trabalhos publicados versavam, predominantemente, sobre o chamado Direito das Finanças. Outra dívida de Girão para com o burilador de Parêmias, foi a sua indicação para ocupar uma das cadeiras da Casa do Barão de Studart.

O educador, historiador e político Pe. Tomás Pompeu de Sousa Brasil, o Senador Pompeu, "por certo, a figura mais projetada da Política e da Cultura no século passado nesta então Província do Ceará", mereceu do ex Prefeito de Fortaleza um sucinto mas completo estudo biográfico, por ocasião do centenário de morte do destacado homem público e escritor, em 1977.

Leonardo Mota, grande folclorista e figura humana da mesma envergadura, contou com a estima e admiração constantes do Historiador, que privou da sua intimidade. Nos seus últimos anos de existência, obeso e impossibilitado de locomover se em virtude de quadro reumático crônico, recebia o Leota, até o seu finar se, em começos de 1945, as freqüentes e alentadoras visitas de Raimundo Girão.

"Abolicionista de convicção, foi dos mais ardorosos e eficientes detratores do cativeiro. Jornalista combativo, cronista delicado, estudioso das ciências naturais, historiador de profunda acuidade. A história cearense deve lhe a melhor das contribuições (...)"   assim define Girão a figura ímpar de Antônio Bezerra. Em homenagem ao autor de Algumas Origens do Ceará, preparou, com longas e penetrantes apresentações, além de valiosas notas de atualização, a reedição dos volumes Notas de Viagem e Descrição da Cidade da Fortaleza, de há muito esgotadas.

Raimundo Cela representou, no entendimento do elaborador de Páginas Exumadas, o supra sumo, a figura mais destacada das artes plásticas, entre nós. Louvava lhe a maestria figurativa e o interesse em perpetuar, em telas magníficas, a nossa gente simples: vaqueiros, jangadeiros, artesãos, operários, tipos populares...

Fraterna amizade e admiração recíproca desde a juventude de ambos, ligaram Raimundo Girão a Jáder de Carvalho. Aquele chamava a este de Jader, assim mesmo, com a tônica em der. Ressaltava, vezes sem conta, o destemor pessoal, a embasada cultura sociológica, o talento ficcional e, notadamente, poético do cinzelador de Água da Fonte, seu ex colega do Liceu do Ceará. Politicamente divergentes sob o ponto de vista ideológico, tal diferença em tempo algum arranhou a lealdade que mantiveram entre si, ao longo de suas existências.

José Aurélio Saraiva Câmara, coronel do Exército, professor, biógrafo e historiador de incontestáveis méritos, foi outra das admirações de Girão. Irmanados por grande estima e o apego à História do Ceará, confabulavam, trocavam impressões e auxiliavam se, com freqüência, em suas perquirições sobre os fatos significativos do nosso passado. Escreveu sobre o amigo Zeaurélio, em abril de 1975, bela página de saudade, por ocasião do primeiro aniversário do seu precoce desaparecimento.

A preocupação de meu Avô em registrar e interpretar os mais representativos acontecimentos que marcaram a nossa evolução sócio política econômica, aliada ao desejo de resgatar do esquecimento as figuras exponenciais que assinalaram a nossa trajetória como povo, levaram no, além da feitura da sua extensa bibliografia, a participar, de modo muito decisivo, de várias comissões que promoveram, cada uma a seu tempo, a fundação ou reestruturação de museus, assim como a ereção de bronzes a de graníticos monumentos.

Propugnou, em muitas ocasiões e por meios diversos, a supremacia do sertanejo   leia se, vaqueiro   sobre o jangadeiro, como figura propulsora da colonização do Siará Grande, para não dizer, de todo o semi árido nordestino.

A CEARENSIDADE E O AMOR À FORTALEZA

Raimundo Girão nasceu na fazenda Palestina, nos sertões de Morada Nova, à margem esquerda do rio Banabuiú, passando lá a primeira infância; adolesceu na aprazível Maranguape e fez transcorrer a adultícia e a maturidade em Fortaleza, a sua Cidade de Matias Beck, a sua Cidade do Pajeú, a sua Cidade do Forte, a sua Cidade do Oceano Verde. Vivenciou, por conseguinte, sertão, serra e litoral, impregnando se das três zonas formadoras da nossa hinterlândia.

De uma cearensidade radicular, somente em curtos períodos de viagens turísticas ou de pesquisas, abandonou o seu torrão natal. Não dispensava o repouso e a dormida numa acolhedora rede e apreciava, sobremaneira, os pratos da culinária local.

Na percuciente observação do genealogista, historiador e ensaísta Joaryvar Macedo, Girão escreveu, considerando se a extensão e a abrangência temáticas, as grandes sínteses da História do Ceará, quais sejam: O Ceará, em co autoria com Antônio Martins Filho, com edições em 1939, 1945 a 1966; História Econômica do Ceará, 1947; Pequena História do Ceará, 1953 e que já vai pela quarta edição; A Abolição no Ceará, de 1956 e reeditada em 1969 e 1984; Os Municípios Cearenses e os seus Distritos, em 1983; e Evolução Histórica Cearense, de 1986. Poderíamos ainda incluir nesta relação os opúsculos Bandeirismo Baiano e Povoamento do Ceará, de 1949, e A Marcha do Povoamento do Vale do Jaguaribe (1600   1700), que veio à publicidade, em separata, no ano de 1986.

Publicou em 1967, após afanosas pesquisas em fontes primárias e secundárias, o premiado Vocabulário Popular Cearense. Bem recebido pelo público e pela crítica, tal levantamento lexicográfico ratifica, uma vez mais, o grande interesse que o autor de Pequena Galeria Moradanovense dispensava à sua gente.

Fortaleza, a "Minha Cidade do Oceano Verde", como ele a chamou em belíssimo poema em prosa, teve em Raimundo Girão um dos seus mais dedicados e fiéis amantes.

Aqui chegando aos 13 anos de idade, namorou a por quase oito decênios. Estudou lhe as origens e a evolução histórica, o que o habilitou a publicar, afora trabalhos menores, dez percucientes e saborosos estudos sobre a Cidade Armada. Tais ensaios, entendemos nós, guardam entre si uma certa complementariedade. São eles: Cidade da Fortaleza  Filmagem Histórica, 1945; A Princesa Vestida de Baile, 1950; Retrato de Fortaleza, em parceria com Ubatuba de Miranda, 1954; Educandários de Fortaleza, 1956; Geografia Estética de Fortaleza, edições de 1959, 1979 e 1997; História da Faculdade de Direito do Ceará, 1960; Matias Beck   Fundador de Fortaleza, 1961; Porto do Mucuripe, solução ótima para um problema difícil, 1976; A Cidade do Pajeú, 1982; a Fortaleza e a Crônica Histórica, 1983 e reimpressões em 1997 e 2000. Por tão inigualável bagagem, Girão é considerado por muitos o maior historiador da Cidade do Forte.

Na década de 60 defendeu corajosamente e com embasada e irrefutável argumentação os primórdios holandês e calvinista da Loira Desposada do Sol. Refutou com energia os irracionais insultos da horda morenista (defensores do luso católico Martin Soares Moreno, embotados por obtuso preconceito religioso), lançados contra a figura honrada e respeitável, sob todas as miradas, do flamengo Mathias Beck, preposto da Companhia das índias Ocidentais. Acusaram o próprio Raimundo Girão de anticlerical e cabotino. O tempo, solução para muitos impasses, veio a confirmar a veracidade da tese beckista, através de posteriores, imparciais e judiciosas opiniões emitidas por estudiosos da matéria.

O Historiador de Fortaleza, seu ex Prefeito e ex Secretário Municipal de Urbanismo recebeu com visível contentamento, em 07 de julho de 1987, o título de Cidadão Maranguapense. Curiosamente, em duas oportunidades distintas, recusou o diploma congênere que lhe quis conferir a Câmara Municipal de Fortaleza. No seu entendimento, todo aquele nascido em território cearense era, intrínseca e automaticamente, um cidadão da sua capital, para tanto não importando a outorga oficial.

Recebeu Raimundo Girão expressiva e merecida homenagem póstuma quando, a 29 de agosto de 1991, assinou o Prefeito de Fortaleza Dr. Juraci Vieira de Magalhães, o Dec. n° 8597. Este diploma legal, regulamentando a Lei n° 6528, de 09 de novembro de 1989, alterou a denominação da Avenida Aquidabã para Avenida Historiador Raimundo Girão. O projeto de lei ao legislativo municipal foi iniciativa do vereador Eng° Francisco Martins. Uma das mais importantes artérias que ligam o bairro da Praia Iracema ao do Meireles, a mesma foi aberta em inicio da década de 30, período em que o Historiador timoneava a Prefeitura Municipal de Fortaleza.

Ainda em 1991, período de 06 a 20 de dezembro, com o apoio da Secretária da Cultura a Desporto do Ceará, promovemos, juntamente com Valdelice Carneiro Girão e Carlos Lima, a mostra pictórica Cidade de Mathias Beck   Aspectos da Fortaleza de Sempre, exposição de 38 telas de nossos acervos particulares, executadas por artistas plásticos cearenses, retratando construções e logradouros de significativa importância histórica para a Capital dos Verdes Mares. O Salão Nobre do Palácio da Abolição recebeu um bom número de visitantes. Lançamos, na mesma ocasião, livreto explicativo contendo, dentre outras, várias citações extraídas da obra de Raimundo Girão, o grande homenageado do evento.

PALAVRAS FINAIS

Viveu Raimundo Girão os derradeiros anos de sua longeva e luminosa existência sempre em franca e incansável atividade intelectual, ora produzindo novas obras, ora atualizando e reeditando as anteriormente publicadas. Na sua confortável residência da Avenida Rui Barbosa, cercava se do constante carinho e atenção de familiares, parentes e amigos. Os fins de semana passava os, alternadamente, na sua vivenda de praia, na Caponga, ou no Passaré   locais já referidos em outra parte destas relembranças. Tomava, com moderação, o seu whisky com água de coco, acompanhado de castanhas de caju. Em tempo algum foi adepto do tabagismo. Jamais apostou em loterias.

Embora fosse um entusiasta do futebol desde os anos 20, quando amadoristicamente integrou, na condição de titular da lateral esquerda, o Guarani Atlético Clube, da primeira divisão cearense; Girão não freqüentava estádios. Acompanhava, porém, com grande interesse as pelejas transmitidas pela televisão, fossem de competições regionais, internacionais ou copas do mundo. Nenhuma das equipes locais da atualidade gozou da sua predileção. Declarava se, nada obstante, torcedor do Fluminense, muito provavelmente por ostentar a agremiação carioca as cores do seu saudoso Guarani, de há muito desaparecido.

O meu avô Girão teve continuamente a cuidá lo, qual um quarteto de vigilantes guardiões ou dedicados anjos protetores, a sua amantíssima a incomparável Marizot, minha avó, companheira de seis décadas de harmoniosa e feliz união matrimonial, mulher que lhe esteve sempre à altura a ao lado, pelos incontestáveis predicados de caráter e largueza de coração; as filhas solteiras Celda e Celne, as meninas do Girão   como serão sempre chamadas; e o Célio, o seu primogênito. Médico, professor e, tal qual o pai, com forte inclinação para os temas históricos, procurava o dedicado esculápio manter o equilíbrio do já precário estado de saúde do genitor muito amado.

Faleceu Raimundo Girão em 24 de julho de 1988, um domingo, às 15h 15min, na Clínica Prontocárdio, de Fortaleza, após 28 dias de internação, em conseqüência a quadro sindrômico denominado falência múltiplos dos órgãos. Debalde foram os esforços da vontadosa e atuante equipe médica chefiada pelo doutores Célio Brasil Girão, José Eduílton Girão e José Cleson de Menezes Aquino. A idade provecta do Historiador constituiu fator determinante para o seu não restabelecimento.

O velório e, na manhã seguinte, o sepultamento aconteceram no Cemitério Parque da Paz, onde recebeu Raimundo Girão as despedidas e as homenagens de quase sete centenas de pessoas, dentre familiares, parentes, amigos, admiradores e populares que o estimavam. Falaram à beira do túmulo, em comovidos pronunciamentos, os senhores Eduardo Bezerra Neto, pelo Instituto do Ceará; Antônio Girão Barroso, pela Sociedade Cearense de Geografia a História; Clodomir Teófilo Girão, pelos conterrâneos moradanovenses; Stênio Dantas, pelo Tribunal de Contas do Ceará; Evaldo Ponte, pelos aposentados do mesmo Tribunal; Sebastião de Almeida Castelo Branco, pelo Rotary Club de Fortaleza; José Aderaldo Castelo, pela Escola de Administração do Ceará e Dolores Aquino, em nome dos jovens escritores cearenses. Coube ao articulista e biógrafo Luís de Sousa Girão, o Luisinho, irmão mais novo do pranteado falecido, em nome da família agradecer as inúmeras manifestações de solidariedade recebidas. A Prefeita Municipal de Fortaleza Maria Luíza Fontenele decretou luto oficial por três dias.

A partida definitiva de Raimundo Girão plantou uma imorredoura saudade nos corações que ele cativou, pela sua bondade e magnitude de espírito, abrindo nas culturas cearense e nordestina, fendas de impossível mensuração.

Se cada ser humano é uma palavra de Deus, na sua individualidade que não se repete, como belamente intuiu Karl Adam, o homem Raimundo Girão foi uma eloqüente palavra do Criador.

Fortaleza, março de 2000.

Eurípedes Chaves Júnior. Médico, advogado, escritor, neto e biógrafo do Historiador Raimundo Girão.

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