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Carlos D'Alge - Raimundo Girão e a História do Ceará

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A bibliografia de Raimundo alcança dezenas de publicações e compreende trabalhos de investigação histórica, econômica, sociológica, geográfica e genealógica. A consulta a seus livros é fundamental para quaisquer estudos regionais. O cuidado no preparo das edições, as referências a índices bibliográficos, as notas e apêndices, recomendam-no como pesquisador metódico e autoridade bem informada.

Da sua extensa bibliografia publicou a imprensa da Universidade Federal do Ceará: a Geografia Estética de Fortaleza, iniciando em 1959 a coleção Biblioteca de Cultura, série Documentário; a História da Faculdade de Direito, de 1960; o Vocabulário Popular Cearense, de 1967; a 2ª edição de A Abolição no Ceará.

A Geografia Estética de Fortaleza veio completar a 1ª edição da Pequena História do Ceará, detendo-se o autor sobre a evolução da capital, estudando a sua paisagem humana, ensinando-nos a "amar a cidade na admiração das suas belezas a encantos, na apreciação artística e espiritual de tudo o que ela possa ofertar de natural, de humano, de sentimental nos seus palácios e casebres, nos seus recantos de toda a sorte, nas suas praias, nas suas vias, nas suas pontes, nos seus parques, nos seus monumentos, nas suas relíquias, nas suas luzes, na graça das suas cachopas, nos costumes e hábitos de sua gente, na sua cultura mental, no seu folclore, na singularidade, enfim do seu complexo urbanístico, social a político". (1)

Seguem-se a História da Faculdade de Direito e o Vocabulário Popular Cearense, este precioso manual de consulta para qualquer investigação nos campos da antropologia, sociologia a folclore do Ceará. Ressalte-se que o Vocabulário já foi utilizado em Paris, durante um semestre de estudos de literatura brasileira, na Sorbonne, nas aulas ministradas pelo Professor Raymond Cantel.

Detenhamo-nos na 3ª edição da Pequena História do Ceará. Revista pelo autor, esta edição integra a série Documentário, vol. 5, da Biblioteca de Cultura da UFC. Desnecessário ressaltar o esmerado aparato gráfico, que confirma o excelente nível atingido pela Imprensa Universitária.

Realiza-se uma deliciosa aventura percorrendo, através do livro, os cenários, sombras e cores, o trágico e o épico, do grande painel que é a história do Ceará. A síntese histórica do Estado, arrumada segundo os desejos de Tomás Pompeu Sobrinho, aí está, atendendo, como assinalou o inesquecível cientista, "a prementes solicitações do momento no setor cultural e político".

São um pouco mais de três e meio séculos de história, a contar da chegada da bandeira exploradora chefiada por Pero Coelho de Sousa que, em 1603, alcançava terras cearenses, comandando 65 soldados e 200 índios e no meio daqueles o soldado Martin Soares Moreno. Daí, até o desenvolvimento do Ceará atual, é toda uma epopéia de luta, conquista, derrota, cansaço, aventura, sofrimento, êxito a progresso.

O livro compreende nove títulos que agrupam diversos capítulos. Os títulos correspondem aos seguintes temas: Primórdios da Colonização; A Formação Étnica e Social; A Formação Econômica; A Formação Político-Administrativa; Política Cearense no Império e na Regência; A Política Cearense no Segundo Reinado; A Política Cearense na República; A Formação Espiritual; e Evolução e Desenvolvimento do Ceará Atual.

Precede a obra notável Roteiro Bibliográfico, valiosa fonte de referências a documentos e estudos sobre a História do Brasil e a História do Ceará. O primeiro documento é a Relação do Maranhão, escrita pelo Padre Luís Figueira, em 26 de março de 1608, seguindo-se a lista de obras publicadas nos séculos 17 a 18; os estudos realizados no século passado por João Brígido, Senador Pompeu, Pedro Theberge e Tristão de Alencar Araripe; ressaltada a importância da fundação do Instituto do Ceará, a 4 de março de 1887, e a sua contribuição para a historiografia cearense através da Revista do Instituto e dos trabalhos de pesquisas elaboradas pelo Barão de Studart, Tomás Pompeu de Sousa Brasil, Carlos Studart Filho, Tomás Pompeu Sobrinho, Renato Braga, José Aurélio Saraiva Câmara e Mozart Soriano Aderaldo.

A Pequena História do Ceará é destinada ao leitor médio, assim esclarece Raimundo Girão, "não satisfeito com meras sínteses, nem disposto a leituras mais acuradas a difíceis". Acrescentaria que não somente ao leitor médio, mas a qualquer interessado, erudito ou não, pela história cearense. Livro de fácil assimilação, de redação clara e concisa, bem estruturado e apresentado, não se perdendo em minúcias enfadonhas, mas atingindo a pronta comunicação, constitui-se em um roteiro preciso ao alcance de professores, estudantes, pesquisadores ou daquele público médio, interessado em conhecer um pouco melhor a história de uma terra curiosa e sofrida.

No painel em que se fixam três séculos e meio de história há lances dramáticos, aos quais o historiador empresta a necessária emoção, respeitando a verdade histórica e enriquecendo-a com instantes de criatividade. O primeiro desses lances é a lenda tristíssima do êxodo de Pero Coelho, conforme a expressão de João Brígido. Aí aparece em cenário sombrio e devastador a seca de 1605/1606, a primeira que a história cearense registra. Narra-nos o autor da dolorosa peregrinação do pioneiro da conquista do Ceará, que inicia, com a família, a longa marcha do Jaguaribe ao Forte dos Reis Magos no Rio Grande do Norte. Depois a viagem dos jesuítas Francisco Pinto e Luís Figueira, sucedendo o martírio do primeiro e o conhecimento da terra pelo segundo que, após tentar a catequização do gentio, vai morrer, como náufrago, devorado pelos índios aruãs, da ilha de Marajó, em 1643. A posse da terra com Martin Soares Moreno, "o patriarca da civilização do Ceará", na definição de Pedro Calmon, imortalizado no romance de Alencar. Os ataques a as invasões estrangeiras. A chegada dos holandeses ao Mucuripe, as explorações do Comandante Gedeon Morris de Jonge e a sua morte pelos índios revoltados, que aniquilaram em 1644 a Fortaleza de São Sebastião, erguida por Soares Moreno. Os anos de abandono até a nova tentativa de colonização por Matias Beck e a construção do Forte de Schoonenborch, berço da cidade de Fortaleza.

Depois dessa perspectiva em que se delineiam os termos da conquista e posse da terra, da colonização e catequização, da presença holandesa, a sua contribuição para a fundação da Capital, descreve Raimundo Girão o quadro fisiográfico do Ceará, a sua formação étnica, o povoamento e a consolidação do domínio português. Analisa o historiador as sesmarias e a formação da propriedade territorial, a divisão de classes, a habitação, o vestuário e a alimentação.

Destaca-se o registro ao vaqueiro ou à civilização específica do pastoreio, a única viável ao território cearense. Era a "época do couro", referida por Capistrano de Abreu:

"de couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e, mais tarde, a cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a mala para guardar a roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagens, as bainhas de facas, as broacas a os mourões, a roupa de entrar no mato, os bangüês para curtumes ou para apurar sal." (2)

E era também a época da casa de fazenda, semelhante em função à casa grande dos engenhos da zona açucareira. Só o gado empolgava a gente da fazenda. Não havia luxos. A mesa era farta e a alimentação se baseava exclusivamente na carne a no leite e seus derivados. Não se comiam frutas nem legumes. Diz Raimundo Girão que "o Ceará ainda é o sertão melhorado, mais civilizado, porém sertão" .

Conta-nos o historiador como principiaram a funcionar as charqueadas, comércio exclusivo da capitania, a sua importância na economia cearense para ressaltar os efeitos desastrosos da grande seca de 1790/92 que, aniquilando a rendosa indústria, possibilitou o seu reaparecimento, mais tarde, no Sul do País.

A formação político-administrativa é examinada no título 4°, indispensável para se conhecer a administração judiciária e fazendária da capitania, tornada autônoma pela carta régia de 1799. Aí se retrata, também, o início das exportações para o exterior e como se procedia nesse comércio que negociava sacas de algodão e de arroz e exportava o salitre ou nitrato de potassa, insubstituível na fabricação de pólvora, desconhecidas que eram naquele tempo, remata mestre Girão, as propriedades dos derivados da glicerina, da celulose e outros. A extração do salitre no Ceará foi confiada ao naturalista Feijó, trazido de Lisboa, e que legou valiosas informações nas suas Memórias.

O quadro político no Império a na Regência é visto com sobriedade, ressaltando o historiador os episódios que culminaram com a revolução de 1817, examinando a conduta das figuras exponenciais do movimento: Pereira Filgueiras, Martiniano de Alencar, Inácio Benevides, Tristão Gonçalves, Pe. Carlos José dos Santos, Pe. Miguel Carlos, Frei Francisco de Santana e tantos outros nomes empenhados na conquista da sonhada república nativista que duraria, vitoriosa, no Ceará, oito dias apenas. Movimento considerado por Câmara Cascudo, citado por Raimundo Girão, como "a mais linda, inesquecível, arrebatadora e inútil das revoluções brasileiras".

A insubmissão de 1824 é analisada em todos os seus procedimentos, desde o dia 9 de janeiro, quando a Câmara da Vila de Campo Maior de Quixeramobim resolve declarar "excluído o trono

o imperador e decaída a dinastia bragantina", até ao desmoronamento da efêmera república cearense, e o fuzilamento dos adeptos da República do Equador, lamentável episódio em que perderam as vidas, no Campo da Pólvora, depois Praça dos Mártires, hoje Passeio Público, o Pe. Gonçalo Mororó, Pessoa Anta, Francisco Miguel Pereira Ibiapina, Luís Inácio de Azevedo e Feliciano José da Silva Carapinima.

A seguir o historiador vai deter-se em alguns dos aspectos mais significativos da política cearense no Segundo Reinado: a participação na Guerra do Paraguai e a abolição da escravatura, para destacar a atuação dos briosos militares cearenses General Tibúrcio e General Sampaio naquele "rude mas glorioso embate das armas nacionais", e a participação na campanha antiescravista de sociedades e agremiações, como a Loja Maçônica Fraternidade Cearense, Sociedade Perseverança e Porvir, Sociedade Cearense Libertadora e Centro Abolicionista 25 de Dezembro.

Seis capítulos são dedicados ao estudo da política cearense na República. Neles estão resumidas as lutas partidárias entre conservadores e liberais ou caranguejos e chimangos, como o povo os preferia chamar; as oligarquias; os governos Nogueira Acioli e Franco Rabelo; a sedição de Juazeiro, os conflitos em que avultam os nomes de Floro Bartolomeu e do Padre Cícero Romão; a administração Benjamim Barroso e a apavorante seca de 1915, cujas conseqüências foram terríveis para a economia do Estado, com a emigração de 42.000 cearenses, a morte de aproximadamente 30.000 e a perda de um milhão de cabeças de gado vacum.

Seguem-se referências aos governos João Thomé de Saboya e Silva e Justiniano de Serpa e à vida política às vésperas da revolução de 1930. Uma síntese retrata a evolução da política a partir de 30, passando pelo Estado Novo de 37 e chegando à reconstitucionalização do País.

A educação e a cultura têm registro próprio na Pequena História do Ceará, assinalando-se o começo da educação e do ensino no Estado com a instalação do Liceu em 1845; a que se segue a fundação de educandários particulares, entre os quais merece referência o Ateneu Cearense, inaugurado em 1863, onde estudaram Capistrano de Abreu, Clóvis Beviláqua, Tomás Pompeu de Sousa Brasil, Domingos Olympio, Rodolfo Teófilo e tantos outros ilustres nomes; o aparecimento das primeiras escolas de ensino superior, para culminar com a criação da Universidade e da Secretaria de Cultura. Assinala o autor a contribuição oferecida pela Biblioteca Pública, que começou a funcionar em 25 de março de 1867. Na parte referente à vida cultural, destaca Raimundo Girão a participação ativa e fecunda do Instituto do Ceará, dos grupos de intelectuais que fundaram a Academia Francesa e a Padaria Espiritual, bem assim a atividade cultural desenvolvida em agremiações como a Fênix Caixeiral e o Clube Iracema, célebres não somente pelos bailes, mas pelos recitais e audições, pelos conferencistas que se faziam ouvir pela sociedade que acorria àqueles salões.

A vida cultural espelha-se ainda nas redações do Ceará Ilustrado (1924) e da revista Maracajá (1929) e ainda na Casa de Juvenal Galeno, e mais tarde no Grupo Clã, que resultou do 1° Congresso de Poesia do Ceará, de 1942.

A vida religiosa é historiada em capítulo à parte, assim como outros episódios do grande painel da história cearense, como as secas e a emigração, a conquista do Acre pelos nordestinos, entre eles avultando pelo heroísmo e valentia os flagelados do Ceará.

Conclui Raimundo Girão o seu roteiro analisando as transformações econômicas, sociais, políticas e culturais do Ceará contemporâneo. Entre estas sobressaem-se as resultantes do ciclo do automóvel, a partir das obras federais de combate aos efeitos das secas, no governo Epitácio Pessoa,

quando se ligou o sertão mais intimamente à Capital, descortinando novos horizontes ao homem. Diz o historiador que o automóvel e o cassaco mostraram ao matuto coisas desconhecidas, idéias a desejos novos, vontade nova e o transformaram. O comércio passou do costado dos jericos para os caminhões. Os jagunços e mandões criminosos assustaram-se com o barulho dos motores de explosão e desapareceram. As moças das casas de fazenda, que só ouviam o mugido dos bois e os cantos dos vaqueiros, viram os moços de fora, engenheiros e feitores de obras que as tiraram de lá, como esposas, para o bulício da cidade. Os coronéis do mato leram os jornais e ficaram sabendo aquilo que ignoravam.

A pecuária e o algodão desenvolveram-se, indo a eles juntar-se outros produtos como as oleaginosas e os minérios e o caju, a que Raimundo Girão dá uma nota especial, enriquecendo a bibliografia sobre este extraordinário fruto.

Assim, com engenho e arte, Raimundo Girão chega ao fim da sua história que não é pequena. Uma história moldada na experiência e no conhecimento, elaborada na medida preconizada pelo grande mestre da historiografia portuguesa, Oliveira Martins:

"A história é sobretudo uma lição moral: eis a conclusão que, a nosso ver, sai de todos os eminentes progressos ultimamente realizados no foro dos ciências sociais. A realidade é a melhor mestra dos costumes, a crítica a melhor bússola da inteligência: por isso a história exige sobretudo observação direta das fontes primordiais, pintura verdadeira dos sentimentos, descrição fiel dos acontecimentos,e ao lado disto, a frieza impassível do crítico, para coordenar, comparar, de um modo impessoal ou objetivo, o sistema dos sentimentos geradores e dos atos positivos."(3)

Na Pequena História do Ceará, Raimundo Girão colocou todo o carinho pelo nosso Estado, que conhece como ninguém, procurou a objetividade e a conseguiu, descreveu a terra com fidelidade, retratou-a com justeza. A sua história é a história de todos nós, cearenses ou não, que têm neste rincão a sua morada, dos nossos ancestrais, dos pioneiros e colonizadores. Nesse roteiro o leitor não se perderá nunca, pois mestre Girão é seguro timoneiro e não deixa o barco à deriva, pois que construiu a sua obra com grandeza e serenidade, sem deixar-se jamais tocar pela parcialidade ou pela paixão.

(Revista da Academia Cearense de Letras, vol. 88 nº 44, 1983)

Carlos d'Alge. Escritor, jornalista, professor, membro da Academia Cearense de Letras.

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1 Geografia Estética de Fortaleza, Biblioteca de Cultura, série Documentário, Imprensa Universitária do Ceará, 1959,

2 ABREU, Capistrano de. Capítulo de História Colonial (1500-1800) .Edição da Sociedade Capistrano de Abreu, F. Briguiet e Cia., Rio de Janeiro, 1934, pág. 143.

3 MARTINS, Oliveira-História de Portugal. Guimarães Editores, 14ª edição 1964, pág. 7.